tag:blogger.com,1999:blog-45334456845698517812024-03-13T22:33:30.348-07:00Diego DoncelDiegohttp://www.blogger.com/profile/12926700743267698901noreply@blogger.comBlogger1125tag:blogger.com,1999:blog-4533445684569851781.post-55934313090537028012007-12-30T10:26:00.000-08:002007-12-30T10:37:21.959-08:00<span style="font-family:verdana;font-size:85%;"><em><strong>Ninguém</strong></em></span><br /><span style="font-family:verdana;font-size:85%;"><strong><em></em></strong><br />Acordei toda a minha vida ao mesmo sonho<br />e a cada instante tive de inventar-me quem era eu.<br />Procurei-me sem paz, como a si procura um homem que guarda<br />enormes quantidades de ansiolíticos no fundo dos seus bolsos<br />e recomendações terapêuticas.<br />Mas apenas encontrava o horizonte alucinado<br />da psiquiatria a pôr ordem na minha alma, os paraísos químicos<br />como forma de encontrar a verdade,<br />os sonhos que se sonharam falsos ao serem sonhados e não quiseram existir.<br /><br /><br />Ah sim, sonhei-me sem trégua<br />como um mendigo de sensações impossíveis,<br />como alguém falho de amor que procura amor<br />e acaba a chorar debaixo da intempérie absurda<br />dos seus sentimentos. Como alguém que, debaixo dessa intempérie,<br />saiu de si com o seu psiquismo sozinho e se procurou<br />no outro, mas o outro não era nada:<br />só esse horizonte de sacos de lixo à beira de todos os caminhos<br />abertos no meu coração, e estabelecimentos alternativos<br />para a cura de qualquer cansaço e de qualquer metafísica,<br />estabelecimentos onde sempre se via um velho meditar<br />o seu suicídio enquanto acariciava<br />a tremer o colesterol da sua pança<br />debaixo de uma camisa Cacharel de contrafacção.<br /><br /><br />Espectador irónico de mim mesmo<br />nunca me conheci porque sempre duvidei que existisse.<br />E alguém alheio a mim representava essa doce mentira de visitar o mundo<br />e ver como a vida passa.<br />A complexa maquinaria de um pássaro cantava nos ramos de uma magnólia<br />como um profeta alucinado e não me revelava nenhuma verdade.<br />As dálias e os lilases, com os seus vastos perfumes industriais,<br />com as alterações genéticas da sua beleza<br />apareciam no sonho quotidiano do que era real para mim,<br />mas não significavam coisa nenhuma.<br />Diferentes mulheres, com diferentes personalidades, com diferentes vidas por detrás,<br />com símbolos diferentes do que poderia significar cada uma dessas vidas<br />mostravam-se nos diversos canais informativos<br />de uma loja de electrodomésticos<br />a falar das suas tragédias como belos fantasmas<br />sem que ninguém lhes prestasse nenhuma atenção.<br /><br /><br />Sempre o pó das coisas,<br />como um vasto nevoeiro, sem ir a parte alguma.<br />Sempre a irrealidade dos sentimentos,<br />a irrealidade das percepções<br />que revelam a tragédia de viver. Sempre o viver<br />como algo sem propósito, sem nexo.<br />Como algo emprestado e falso onde nos dias límpidos,<br />no sonho dos dias límpidos, se podia fingir uma cidade<br />e homens e talvez o alento de algo como a vida.<br /><br /><br />Por vezes um pintassilgo regressava ali de não sei onde<br />e a leveza do seu bico sobre as pétalas transmitia-me um pouco<br />de calor. Um calor de existência.<br />Por vezes surpreendiam-me os meus próprios gestos<br />como se por detrás de eles houvesse uma alma,<br />ainda um instante de alma, algum alívio.<br />Por vezes uma humilde primavera<br />apócrifa parecia despertar dentro de mim.<br />E das janelas dos edifícios<br />ou no vislumbre da velocidade dos carros<br />o sol arremedava vigiar os meus pensamentos.<br /><br /><br />Mas no fim sentia que em tudo aquilo não estava eu,<br />que no lado do mais além de todas as presenças<br />a luz era um regueiro de cinza,<br />o deserto puro da minha fantasia, a metafísica<br />do meu próprio cansaço. Alguém não me deu a claridade de visão<br />nem a mente clara para ver claras as coisas.<br />Alguém talvez não pôs em mi demasiada lucidez<br />para ver o mundo na sua infinita simplicidade:<br />a rosa como rosa, o sol como sol,<br />a terra como terra sem estar eu pelo meio.<br />Sem estar o sonho de mim a invadir tudo.<br />Sem estar este sonhado fantasma que me acompanha<br />e a que chamo o nome que outros me dão.<br /><br /><br />Sempre soube que nunca me conheci<br />pois também nunca pude conhecer o mundo.<br />Tive de inventar-me quem era para, de vez em quando,<br />me julgar em posse de um pouco de realidade.<br />Tive de possuir um pouco de realidade<br />para perceber a minha dimensão como homem:<br />esta alma suja de dor, estes envelhecidos olhos pela passagem das insónias.<br />Para perceber que entre conhecer-se e desconhecer-se<br />o melhor é esquecer-se de si mesmo.<br />Que para esquecer-me de mim apenas devia ser ninguém:<br />a nuvem de pó de um remoto e solitário caminho.<br /><br /><br />Tenho os meus próprios paraísos químicos aqui junto da lareira,<br />os meus dias e as minhas noites dedico-os a regressar a uma qualquer longínqua província<br />do silêncio onde possa encontrar dentro da minha loucura<br />um pouco de serenidade. Sim, hoje regressei ao sonho<br />da morte como outra invenção,<br />talvez como a única verdade dentro deste equívoco.<br /><br /><br />E o que não sei é se pode morrer um morto.<br /><br /><br /><em>Em Nenhum Paraíso</em> – Tradução de Joaquim Manuel Magalhães (Averno 017)<br /><br /></span>Diegohttp://www.blogger.com/profile/12926700743267698901noreply@blogger.com0