Ninguém

Acordei toda a minha vida ao mesmo sonho
e a cada instante tive de inventar-me quem era eu.
Procurei-me sem paz, como a si procura um homem que guarda
enormes quantidades de ansiolíticos no fundo dos seus bolsos
e recomendações terapêuticas.
Mas apenas encontrava o horizonte alucinado
da psiquiatria a pôr ordem na minha alma, os paraísos químicos
como forma de encontrar a verdade,
os sonhos que se sonharam falsos ao serem sonhados e não quiseram existir.


Ah sim, sonhei-me sem trégua
como um mendigo de sensações impossíveis,
como alguém falho de amor que procura amor
e acaba a chorar debaixo da intempérie absurda
dos seus sentimentos. Como alguém que, debaixo dessa intempérie,
saiu de si com o seu psiquismo sozinho e se procurou
no outro, mas o outro não era nada:
só esse horizonte de sacos de lixo à beira de todos os caminhos
abertos no meu coração, e estabelecimentos alternativos
para a cura de qualquer cansaço e de qualquer metafísica,
estabelecimentos onde sempre se via um velho meditar
o seu suicídio enquanto acariciava
a tremer o colesterol da sua pança
debaixo de uma camisa Cacharel de contrafacção.


Espectador irónico de mim mesmo
nunca me conheci porque sempre duvidei que existisse.
E alguém alheio a mim representava essa doce mentira de visitar o mundo
e ver como a vida passa.
A complexa maquinaria de um pássaro cantava nos ramos de uma magnólia
como um profeta alucinado e não me revelava nenhuma verdade.
As dálias e os lilases, com os seus vastos perfumes industriais,
com as alterações genéticas da sua beleza
apareciam no sonho quotidiano do que era real para mim,
mas não significavam coisa nenhuma.
Diferentes mulheres, com diferentes personalidades, com diferentes vidas por detrás,
com símbolos diferentes do que poderia significar cada uma dessas vidas
mostravam-se nos diversos canais informativos
de uma loja de electrodomésticos
a falar das suas tragédias como belos fantasmas
sem que ninguém lhes prestasse nenhuma atenção.


Sempre o pó das coisas,
como um vasto nevoeiro, sem ir a parte alguma.
Sempre a irrealidade dos sentimentos,
a irrealidade das percepções
que revelam a tragédia de viver. Sempre o viver
como algo sem propósito, sem nexo.
Como algo emprestado e falso onde nos dias límpidos,
no sonho dos dias límpidos, se podia fingir uma cidade
e homens e talvez o alento de algo como a vida.


Por vezes um pintassilgo regressava ali de não sei onde
e a leveza do seu bico sobre as pétalas transmitia-me um pouco
de calor. Um calor de existência.
Por vezes surpreendiam-me os meus próprios gestos
como se por detrás de eles houvesse uma alma,
ainda um instante de alma, algum alívio.
Por vezes uma humilde primavera
apócrifa parecia despertar dentro de mim.
E das janelas dos edifícios
ou no vislumbre da velocidade dos carros
o sol arremedava vigiar os meus pensamentos.


Mas no fim sentia que em tudo aquilo não estava eu,
que no lado do mais além de todas as presenças
a luz era um regueiro de cinza,
o deserto puro da minha fantasia, a metafísica
do meu próprio cansaço. Alguém não me deu a claridade de visão
nem a mente clara para ver claras as coisas.
Alguém talvez não pôs em mi demasiada lucidez
para ver o mundo na sua infinita simplicidade:
a rosa como rosa, o sol como sol,
a terra como terra sem estar eu pelo meio.
Sem estar o sonho de mim a invadir tudo.
Sem estar este sonhado fantasma que me acompanha
e a que chamo o nome que outros me dão.


Sempre soube que nunca me conheci
pois também nunca pude conhecer o mundo.
Tive de inventar-me quem era para, de vez em quando,
me julgar em posse de um pouco de realidade.
Tive de possuir um pouco de realidade
para perceber a minha dimensão como homem:
esta alma suja de dor, estes envelhecidos olhos pela passagem das insónias.
Para perceber que entre conhecer-se e desconhecer-se
o melhor é esquecer-se de si mesmo.
Que para esquecer-me de mim apenas devia ser ninguém:
a nuvem de pó de um remoto e solitário caminho.


Tenho os meus próprios paraísos químicos aqui junto da lareira,
os meus dias e as minhas noites dedico-os a regressar a uma qualquer longínqua província
do silêncio onde possa encontrar dentro da minha loucura
um pouco de serenidade. Sim, hoje regressei ao sonho
da morte como outra invenção,
talvez como a única verdade dentro deste equívoco.


E o que não sei é se pode morrer um morto.


Em Nenhum Paraíso – Tradução de Joaquim Manuel Magalhães (Averno 017)